segunda-feira, 5 de março de 2012

A garota do coração de vidro

Era mais um dia como todos os outros, parecia ser igual, porém era um dia diferente como sempre. O Circo De L’Amour chegava à cidade. Pequena de poucos habitantes, era possível escutar o ruflar dos tambores anunciando o espetáculo que estava por acontecer. As crianças corriam atrás da carruagem, como se o vento que a sucedesse, deixasse pelo ar a felicidade que por ali não se via à um bom tempo…

E lá estava a garota, sentada à porta com os cotovelos apoiados nos joelhos, e sobre as mãos o queixo, repousando enquanto vislumbrava atenta, cada movimento do chegar daquele povo nômade, que ao longe se aproximava. Trazendo consigo o que aquele lugar largado, árido e perdido tanto esperava… Sorrisos. Esses estranhos eram bem vindos, pois trariam o que ela desejava. Ter em seu rosto a doce expressão de uma bailarina, que guardava no peito o sorriso inundado de melodias dramáticas, sorrisos que ela nunca demonstrava.

Corria para o quarto e enclausurava-se com suas pinturas sujas de lama, da ultima vez que jogara tudo pela janela quando o circo foi embora. Quando não se conteve e fez chover. E essa era a hora, o que tinha restringido para si por tanto tempo, deveria ser entregue. Estava certa de que aquele bom moço de barba, smoking velho e uma cartola esfarrapada escondendo parte dos olhos, porém sobressaindo o atrativo mistério de seus lábios sem fala, saberia cuidar do que iria ela lhe oferecer. Como suvenir, por aparecerem periodicamente não permitindo a alegria dela por completo se findar.

Esperava sempre alguns minutos após a montagem da tenda. E infiltrava-se por lá. Quando menos percebiam, estava ela escondida por baixo das arquibancadas, tendo seus olhos espremidos por entre os pés da platéia. Só assim, conseguia ver de perto tudo que se passava, sem que ninguém pudesse nota-la, ou então convida-la para a apresentação. Tinha medo de estar no picadeiro com a cara limpa. Acreditava piamente que um dos motivos pelo qual o palhaço tanto sorria, é que não podiam ver por trás o verdadeiro homem esmorecido que se escondia sob aquela máscara.

Passava-se toda apresentação e seus olhos permaneciam vidrados, em cada movimento de todos os integrantes do circo. Porém era o palhaço e, aquele misterioso homem da cartola que muito lhe fascinara.

Era fim de apresentação, e não devia estar ali. Se alguém a encontrasse, poderia complicar as coisas. Estava como intrusa, como sempre. Invadia sorrateiramente como vento, cada brecha, cada espaço. Todavia deixava de ser vento, quando estava em questão invadir e ser dona do coração daquele palhaço. De sorriso largo e lábios vermelhos, avantajados pelas bordas que borravam mais acima.

Bem na saída se prostrara. Estava decidida de que não deixaria passar… Todas aquelas noites sentada à porta esperando a volta, de quem foi embora sem aviso prévio que deveria ir, e sem promessa fixa de que poderia voltar. Não considerava sorte, porém sabia que se não fosse a morte, que então fosse a vida a lhe motivar. Escrevendo, não para ele, mas pelo desespero de transformar em grafia, a angustia que consumia no silêncio de uma noite sem luar. Afinal os olhos ocultos daquele belo moço de smoking fajuto, não estavam lá para iluminar.

 “O mundo é uma escola, a vida é o circo” dizia Marisa Monte, e ela queria viver. Resgatando então da bela garota o pensamento insano de anteontem, em largar tudo e fugir com aqueles nômades de constante viagem. Teria consigo nada mais importante, do que uma bagagem retendo seu carrossel de porcelana, suas pinturas sujas de lama e quem sabe o amor do palhaço, os afagos, carinhos, e tão desejados sorrisos do homem de lábios fartos…

Abraçaria o mundo se pudesse, e esse era o seu maior erro. Queria acolher, ser abrigo e ter sempre num beijo tudo que era preciso para calar um coração. Porém como pudera ela saber de corações, se isso lhe faltava no momento. Mesmo que tivesse em si esse órgão, ele era frio, imóvel, sem batimentos. Amava então por vontade de ter sentimentos, ou por tornar útil o vidro inquebrável que tinha em seu peito volúpia serventia. Às vezes valia mais a intenção, do que ser amor todos os dias. E ela ainda estava atrás de quem o fizesse ser. Alguém que pudesse desfragmentar esse coração em pedaços escassos, e que não ferisse por dentro quando viesse o perder.

E então vinha o homem de smoking, com o caminho traçado até a carruagem. Sem pausas, sem tempo para as bobagens daquela garota… Tinha ele e o palhaço apenas o dever de ser o mistério e a alegria de modo falso, divididos cada um em um coração, que muito a interessava surrupiar. Pois intrigava profundamente não encontrar o palhaço por lá. Chegada hora de ir embora, nenhum deles poderiam ficar.

Entretanto ela se aproximou, tendo o carrossel em mãos, escondidos para trás de seu corpo, olhava para ele com um sorriso torto, quando então fez-se próxima a ponto de parar o caminhar alheio. Ele não levantava o rosto, permanecia imóvel com um ar que pedia em silêncio, licença para continuar. Parecia não querer falar, e ela entendia que com uma figura misteriosa e sombria não deveria se intrometer, a ponto de toca-lo. Com isso aceitou tê-lo calado, e pôs-se a dizer, o que tanto queria falar…

- Deixe-me ir com você, “O mundo é uma escola, a vida é o circo.” Decidi que por trás do meu coração de vidro, existe uma garota de sonhos contidos que muito deseja viver… Deixe-me ir com você.

Sem resposta ela olhava-o atentamente, quando tirou de suas costas a mão segurando o carrossel de porcelana. Colocou-o perante o homem, querendo mostrar a ele quanto apreço tinha por aquela vida de levar alegria mesmo sem tê-la. Expressava com aquele carrossel, que tinha o que era necessário para ser um deles. Para estar no coração dele, e para ser amada por quem amava por querer, e não por apenas sentir sem poder evitar…

Levantando um pouco o rosto, ele olhou o carrossel, e estendeu a mão em direção à ele, na intenção de pegá-lo, quando por ela foi impedido, escutando o som de um belo carrossel sendo rompido, às quatro partes daquele chão de barro batido…
Ao vê-lo levantar levemente o rosto, ela pode ter ao alcance de seus olhos, novamente parte daqueles lábios fartos e calados. Porém dessa vez eles estavam manchados, avermelhados, avantajados pelas bordas que borravam mais acima… Aquele vermelho que após o espetáculo, estava com sua cor enfraquecida, refletia nos olhos da garota como um brilho derretedor de retina. Que por dentro dela também derretia cada centímetro de vidro frio de seu coração…

(Distanciada)

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